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Foto do escritorVania Maciel

Maria

Atualizado: 9 de mar. de 2020

A história que quero contar é para você, Lúcia, Paula, Bruna, Pedro, Carlos... não importa que nome tenha, desde que esteja, de algum modo, pronto para navegar comigo por mares ora mansos, ora impetuosos. Esta viagem, já experimentei e aviso, é um mergulho na alma feminina. Alma que tem seu colorido mais intenso nos portos, nem tão distantes, de uma terra chamada gravidez.


Maria,

A história que quero contar é para você, Lúcia, Paula, Bruna, Pedro, Carlos... não importa que nome tenha, desde que esteja, de algum modo, pronto para navegar comigo por mares ora mansos, ora impetuosos. Esta viagem, já experimentei e aviso, é um mergulho na alma feminina. Alma que tem seu colorido mais intenso nos portos, nem tão distantes, de uma terra chamada gravidez.


Cada vez que penso nesta louca viagem que fiz para dentro de mim, ao longo destes nove meses, cresce mais a vontade de contar esta história, como se eu acalentasse, secretamente, um desejo de receber, de outros lugares que não apenas dos meus botões e das minhas fantasias, algumas respostas sobre este lugar alucinado que coube às mulheres ao longo da história da humanidade e ao longo da vida de cada uma de nós.


Por motivos diversos, fui registrando minhas brincadeiras e minhas brigas comigo mesma e com outras pessoas, através de cartas, durante todos estes meses.


A primeira pessoa para quem escrevi foi MINHA MÃE, um pouco em homenagem a ela, por ter ocupado, antes de mim, este mesmo lugar, um pouco por perceber que somente em aliança com o tempo pude compreender a força deste elo que me uniu e me separou dela. Coisas de mulher, sabe? Um outro tanto, ainda, por perceber que precisava resgatar velhas lembranças guardadas no baú das minhas recordações, para entender melhor o que se passava comigo durante a gravidez.


Quando percebi que o tempo foi engatilhando os acontecimentos com uma sabedoria mágica, minha história foi se transformando em imagens que traziam pessoas e coisas. Meu PRIMEIRO MARIDO - MARCOS - ocupou estas imagens, dando-me a chance de acolher melhor uma época da qual, até então, só me lembrava como carregada de equívocos e ressentimentos. Escrevi para ele em nome da importância de nosso casamento, na elaboração do aborto que fizemos, na imaturidade de nossa adolescência. Fato esse que nos marcou tanto que agimos em função dele durante quase sete anos, apressando nosso casamento, mostrando uma imensa ansiedade em engravidar e uma absurda dificuldade para consegui-lo.


Acabei engravidando três anos depois do casamento. Nem consigo explicar aquele redemoinho de emoções... Fisicamente, eu estava bem, mas me perdi nos meus conflitos e na pressa que eu tinha por abocanhar a vida. Eu queria sempre viver o capítulo seguinte, sem perceber a intensidade da página que eu estava escrevendo.


Quando meu filho nasceu, senti-me num cataclismo. Era como se ele denunciasse, a todo instante, meu modo de me organizar; naufragada, por um lado, pelos arrependimentos de não ter assumido os momentos passados e, por outro, pela ansiedade de revolucionar o meu futuro. Foi LUCAS quem primeiro me ensinou que havia algo que merecia ser vivido intensamente. Foi ele que me exigiu que eu me apossasse dos rascunhos da minha existência. Foi ele também que me intimou a sair do lugar ilusório da individualidade em que eu me colocava e me ensinou, às vezes rindo, às vezes gritando, as delícias dos afetos entrelaçados. Nesta gravidez, repensei nossa relação e tive vontade de lhe falar disto.


Na relação com Eduardo, meu atual marido, vivo mais uma vez algumas dúvidas e medos, mas vou aprendendo a rir dos defeitos do Dudu, mesmo quando brigamos, defendendo cada um suas convicções ou reivindicando suas carências.


Devagarinho planejamos este novo bebê para preencher a próxima página do nosso álbum, apesar de que este assunto sempre nos deu um frio na barriga. Um dia, no entanto, nos entregamos às nossas emoções, deixando todos os nossos argumentos racionais do outro lado da porta do quarto. Aquele encontro especial mereceu ser eternizado e eu engravidei deste segundo filho. O simples fato de estar dividindo meu corpo e minha vida com alguém, desta vez, foi a experiência mais intensa de que posso me lembrar, em toda a minha vida! Nem tudo foi fácil; aliás, muita coisa não foi fácil. Em alguns momentos, até minha relação com DUDU ficou balançada por meus questionamentos. Estas coisas complicadas de um e de outro, de homem e mulher, de papéis diferentes, de sexualidade sendo posta em vistoria... este foi o assunto da minha carta para este homem tão querido.


Durante este tempo, a bem da verdade, acho que vivi uma revolução cósmica. Vivi de encontros, e foi, também, para diminuir o risco de me perder nas encruzilhadas que sempre marcam os últimos metros nos rumos das descobertas, que senti necessidade de exercitar este velho costume de escrever cartas. Algumas delas até foram remetidas, outras esperam um momento melhor para serem enviadas e algumas outras, ainda, possivelmente jamais serão.

Comecei a escolher, com todo cuidado que podia, as pessoas que eu queria como companheiras desta jornada, porque eu já tinha aprendido que, quando a gente não toma cuidado, acaba vivendo de sustos e não de descobertas. O primeiro acompanhante que eu precisava escolher era um médico. Nesta bifurcação, eu tinha duas opções: ou continuava com o médico com quem tive o Lucas, meio pai, meio semideus, do tipo em quem a gente confia por mais respeito do que por entrega; ou eu partia para trabalhar minha insegurança de realmente me entregar a alguém que me permitisse dividir as decisões e compartilhar as dúvidas.

Quando escolhi a segunda opção, achei que tinha dado grande passo e escrevi ao Dr. FERNANDO, discorrendo sobre o que esperava dele; afinal, eu ouvira falar que ele era adepto de um modo mais natural de nascimento, era um homem mais ou menos da minha idade e trabalhava com barrigudas, tentando entender a gravidez sob um

aspecto mais amplo, fazendo uma aliança com a saúde e não com a doença. Todos os meus problemas resolvidos? Qual o que? Tivemos uma consulta "pós-carta" tão interessante quanto inusitada e que me mobilizou para uma segunda carta dirigida a ele, tantos foram os equívocos da primeira. Precisei de muito papel para acertar a dosagem de entrega e a participação nas decisões sobre este período tão significativo da minha vida e da vida do bebê que eu trazia aderido a mim.


Não sei se você já está cansado das minhas explicações, mas é difícil contar uma viagem tão longa em poucas linhas. Vivi todo este tempo destrinchando a fechadura da porta de grade da gaiola onde me recolhi por alguns anos. Ao mesmo tempo, tenho a sensação de ter estado suspensa no ar, respirando uma nova qualidade de vida. Partilhei estas sensações num grupo de mulheres barrigudas, com histórias tão diversas da minha quanto parecidas. Esta sensação de acolhimento começou a se alastrar em mim como uma exigência. Para merecê-la, eu precisava compartilhá-la. Fui abrindo meus olhos e meus sentidos para as coisas à minha volta, como se, de repente, eu começasse a descortinar uma nova paisagem que vejo quando abro a janela do meu quarto todos os dias. Escrevi para CRISTINA, uma amiga querida, que agora mora em outro país e que engravidou mais ou menos ao mesmo tempo que eu. Contei-lhe, o mais detalhadamente que minha mão aguentou, sobre algumas experiências que vivi neste grupo de gestantes que frequentei e que muito me ajudou.


DÉBORA, uma outra amiga, destas de gente faz a nossa "mestra", recebeu minhas reclamações quando eu, contaminada por este novo modo de estar aqui, do qual falei há pouco, me vi frustrada por minhas dificuldades de estender também ao âmbito

profissional todas estas descobertas...


Aliás, é meio complicado esse negócio de aguçar a percepção a sua volta. A gente começa a se sentir mais compromissada com a nossa realidade social e acaba percebendo que nela se inclui a realidade de outras pessoas, especialmente de outras mulheres. CIDA, que na verdade se chama Aparecida, trabalha comigo há quase dois anos, cuidando da minha casa tanto ou mais que eu. Pois é, ela engravidou quando eu estava com seis meses, quase sete; foi um tumulto!... Como nossos sentimentos são, às vezes, paradoxais... logo eu, que estava tentando viver a minha gravidez de forma tão especial, me vi encarando a gravidez dela como algo pesado e desconfortável. Enfim, precisei novamente do papel, que a esta altura já se havia tornado meu melhor amigo, que me ajudava a reorganizar o tal turbilhão aqui dentro de mim. Ainda bem que consegui e, agora, Cida está aqui em casa, trabalhando, enquanto seu filho começa a fazer traquinagens no ventre negro e brilhante.

Quando a gente olha pro nosso corpo assim, como o dela está agora, se percebe, de um jeito ou de outro, como a moradia de algo divino... É isso mesmo! De repente, eu descobri, ou redescobri que DEUS HABITA EM MIM, e tive vontade de falar com Ele, abrindo meu canal de comunicação com o Cosmos.


Foi chegando perto da hora do parto. Esse é um momento de rituais, onde precisamos engavetar, temporariamente, outros projetos, outros lugares de ação, pra não corrermos o risco de sermos atropeladas por nossas próprias catarses. Eu precisava redigir meu pedido formal de licença. Acontece que não sei escrever meia dúzia de frases para um SISTEMA ilustremente anônimo. É... meu patrão existe, mas não tem nome, não tem cara, não usa terno nem roupa nenhuma. Dá conversar com alguém assim? Então pra que escrever, que seja um telegrama?


Tantos foram os cuidados, tantos foram preparativos e rituais que fiz, que não soube como lidar com as ordens do inusitado. Perto da hora de Clara nascer, Dudu viajou e Lucas foi passar uma semana de férias com o pai. Quase entrei em parafuso quando percebi que ainda havia um encontro inesperado para ter; a SOLIDÃO se apresentou, a princípio, com sua maquilagem de abandono. Cultuou meu medo e até meu pânico para, lentamente, ao final, revelar-se com sua verdadeira face, espelhada de mim mesma. Foi ela que me deu a chance de me encontrar na minha condição essencial de sujeito de mim.


Finalmente! Clara rompeu os domínios do meu corpo, sob um sol esfuziante do signo de Aquário. Minha filha é, para mim, a própria claridade, depois da contagem das luas que sustentou os últimos elos da corrente que atavam meus pés ao anonimato. A carta à CLARA entrega a ela o seu pedaço desta história enlouquecida através da busca. O parto é um fragmento escrito num ritmo desconhecido, como um grito de cessar fogo dado por algum exército da paz.


A viagem está chegando ao fim... Nela, ora estive absolutamente só, ora estive acompanhada... Às BARRIGUDAS que estiveram comigo até próximo à hora do parto, remeti a penúltima carta, para dividir com elas também o pós-parto, o tempo da lua nova...


É isso, depois das nove luas, a lua nova... Este fato mereceu ser celebrado, uma celebração à história, à esperança e ao próprio ato. Uma celebração em grande angular, em movimento, em reverência ao espetáculo da criação até porque, quando depois do tempo de revolução, eu comecei a acreditar que tivesse vivido em transe e que já estava novamente aterrissada à Terra e ao cotidiano; quando, três meses depois que Clara nasceu, eu já recomeçava em minha rotina, igual à de muitas outras mulheres do século XX, me vi sentada, numa certa manhã, rabiscando o papel, e, mais uma vez, algumas frases foram tomando forma e sentando em seus lugares, numa carta para BETH, a coordenadora do grupo, do qual já falei. Ao final, reli minha própria avaliação do processo que vivi e isso determinou em mim uma cadeia de atitudes, no sentido de entregar a você minhas cartas, certa de que devemos partilhar nossas revelações para não ficar por aí vivendo de "quases".


Muito Prazer,


Luiza


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